A última do Totó

 

               Reboam por campos, montanhas, praias e desertos os gritos dos excluídos do direito de um viver digno, sem encontrarem ouvidos que acolham essas indagações para uma resposta resolutiva: por que tantos, atentos à divisa bíblica – ganharás o teu pão com o suor do teu rosto – ao procurarem trabalho rentável, vêm as portas fecharem-se? Por que os desejosos de abrigar os seus amores e seus corpos esmigalhados pelo infortúnio não conseguem sequer um casinholo, mesma que erguido ao desconforto? Por que garotos em plena formação, apinham-se nos becos sórdidos marcados pela dissolução dos costumes, para a pilhagem e perversões insólitas? Por que gurias, no viço do crescimento, entregam os corpos à sanha dos sádicos rebuscadores de prazeres descompromissados e pecaminosos?
            Pois foi nesse torvelinho de perguntas sem respostas que o Totó veio ao mundo. Menino nascido num telheiro lindeiro a um riacho, ninho predileto de miasmas transmissores de toda sorte de enfermidades, onde os pais viviam, emborcados em bebedeiras, numa vadiagem sem fim. Da infância à adolescência, a sua vida foi um rosário de maldades. Menino que só sobreviveu porque estava predestinado a um eito de sofrimentos sem paradeiro. Sem pão para comer e o corpinho crivado de pancadas que lhe desabavam no lombo, pelas mãos cruéis do pai, quando as esmolas recolhidas eram poucas para a satisfação das esbórnias paternas. Maldades que nunca contaram com a aprovação materna. Sempre que possível, a coitada e submissa mulher do malandro evitava a judiaria. E, quando o marido, implacável surrador se afastava, recolhia ela as lágrimas do Totó, enxugando-as nas dobras do vestido quase sempre sujo e malcheiroso. Do pai tinha ódio pela truculência com que o tratava, da mãe piedade pela vida que era obrigada a suportar.
Nesse emaranhado de desditas, caminhou lépido para a criminalidade. Meteu-se numa súcia de gatunos. Conheceu os malefícios da perversão sexual, estuprando garotas de rua como ele, transformando-as em prematuras mães solteiras. Seviciou gente que sequestrava. Serviu de esparros a malandros calejados que, para escapar dos rigores da lei,acoitavam-se na impunidade do menor, que era ele, o pobre Totó. Chegou ao ápice da perversidade. Cansado de dividir o bolo da ladroagem porque nas partilhas so surrupiado, os chefões levavam quase tudo, para ele restando apenas migalhas. Já se considerava um curtido agente do mal, capaz de agir por conta própria. Passou a assaltar a mão armada. Matava impiedosamente. Deliciava-se com o sofrimento dos que torturava. Nenhum vislumbre de decência ou piedade resplandecia naquela alma nodelada para o mal. Contender com ele para que seguisse o bom caminho, era perda de tempo.
            Com a ausência do filho, que esmolava para suprir as necessidades da casa, o pai, despido de pudor, e por ser um vagabundo habitual, obrigou a mulher a prostituir-se. A pobre mulher obedecia o marido na base da pancadaria, e embora lhe repugnasse o meretrício, a ele entregava-se para não ser massacrada a  pauladas. Ainda restava-lhe uma talisca de decência. Vendia o corpo,mas fazia questão de mostrar-se pouco. Andava sempre por ruas escuras e silentes.
            Em conluio com velho companheiro de atrocidades, Totó ajustou a assalto a uma fábrica. Tudo lhes era propício: o local sem iluminação, uma perua furtada para servir de transporte e, por ser material de fácil venda, já contavam com um receptador certo a quem entregá-lo. Costeando um muro, perceberam um vulto que se aproximava. Viram que era uma mulher. Logo a perversão tomou conta dos dois patifes.
             – Vamos bimbar a vadia, convidou o Totó.
             – Topo, – respondeu o comparsa.
          E, quando a pobre mulher menos esperava, sobre ela saltaram os dois homens. Dominada e estirada no chão, o Totó foi o primeiro a possuí-la. Quando na sequência, o companheiro tentou cevar seus instintos sádicos no corpo da pobre mulher, esta, num assomo de revolta, resistiu.
Debatia-se ferozmente para escapulir das garras do segundo aproveitador do seu corpo ofegante e indefeso. Totó, pensamento preso ao projetado assalto à fábrica, sacou do revólver, pediu ao companheiro que se afastasse da mulher e crivou-a de balas. Numa voz firme, mas com detonações de tremura, determinou ao comparsa
 – Acende a lanterna e mete ela em cima da putona, pra gente vê a cada da fera.
Assim que o facho de luz espalhou-se pelo rosto da vítima, um grito angustioso reboou no silêncio da noite: – Manhê, ó manhê.
O Totó havia ultrapassado o limite da sua nefanda vida criminosa.
Meteu o revólver na cabeça, puxou o gatilho e caiu pesadamente sobre o corpo da mãe.
DOUTOR JOÃO RANALI – DIGNÍSSIMO PATRONO DA ACADEMIA DE LETRAS (MEU PAI)

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